terça-feira, 12 de abril de 2011

O Sarcasmo Protestante de Lima Barreto


O ensaio de hoje é de autoria da acadêmica Sarah Fernanda de Carvalho: contempla vida e obra do nacionalista/anarquista Afonso Henriques de Lima Barreto.


Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881. Seus textos possuem características jornalísticas (aspecto de crônica) e urbanistas.
Lima Barreto procurava mostrar a realidade como ele percebia, fazendo duras críticas à sociedade, costumes e valores através de seus personagens. Ele utiliza o discurso em 3ª pessoa, pois dessa forma se distancia das personagens, tornando-se onisciente, além de transmitir para as personagens valores que estão presentes na sua essência. Seus contos são imprevisíveis, como por exemplo o conto “Um Especialista”, no qual dois amigos que se encontram todas as tardes comentam sobre a vida, os amores, os negócios, até que um dos amigos comenta que está namorando uma bela mulata e por fim acaba por descobrir que ela é sua filha, dessa maneira acaba acontecendo um incesto não proposital.
É perceptível a presença autobiográfica nos contos de Lima Barreto. Ele faz uma mescla da sua biografia com um pouco de ficção, como fica nítido em vários contos. Em “O filho de Gabriela”, a personagem Horácio, assim como Lima Barreto, tem seus estudos bancados pelo padrinho, porém sempre se sentiu deslocado; em “Harakashy e as escolas de Java” Lima Barreto faz uma sátira às escolas brasileiras (corrupção no ensino) e à Academia Brasileira de Letras (na qual foi barrado), metaforizadas nas instituições de Java: o jovem Harakashy foi expulso das escolas de Java assim como Lima Barreto sofreu na Escola Politécnica, ele sofreu muito preconceito por ser negro e pobre, e por isso nunca conseguiu concluir o curso. Nesses dois contos é visível a presença do tom irônico de Lima Barreto, no qual ele deixa-se levar por impulsos íntimos, todos frutos da mágoa e do sentimento de inferioridade que passou a sentir após vários fatos negativos que ocorreram em sua vida.
É notável a presença da crítica ao falso moralismo da sociedade burguesa. Em “A Nova Califórnia”, é feita uma crítica à ganância. O falso moralismo é quebrado com a descoberta do lucro, existe também a valorização do que a sociedade rejeita: a única pessoa que não viola as sepulturas em busca de ossos é o bêbado Belmiro que ficou bebendo, indiferente a tudo que acontecia, sem se preocupar em obter lucro através dos ossos dos mortos. Uma curiosidade: esse conto foi adaptado para a Rede Globo e foi ao ar como novela – Fera Ferida. No conto “O homem que sabia Javanês” um amigo conta a outro sobre as espertezas e trapaças que usou para sobreviver: uma delas foi fingir que sabia Javanês sem o saber. Ele conta que foi até nomeado cônsul e representou o Brasil em uma reunião de sábios, deu palestras e publicou pelo mundo em Java. Esse conto mostra a falta de honestidade para conseguir, de certa forma, se dar bem na vida e tirar sempre alguma vantagem sobre os outros. Em “Cló” é retratada a decadência moral de uma família durante o carnaval no Rio de Janeiro, tendo como personagem principal Cló, filha do casal Isabel e Maximiliano, que procura sem rodeios se insinuar para o Doutor André, um amigo da família que é casado. O conto termina com Cló se entregando ao Doutor André (“... Ao acabar, era com prazer especial, cheia de dengues nos olhos e na voz, com um longo gozo íntimo que ela, sacudindo as ancas e pondo as mãos dobradas pelas costas na cintura, curvava-se para o Doutor André e dizia vagamente: Mi compra ioiô! E repetia com mais volúpia, ainda uma vez: Mi compra ioiô!”). Nesse conto fica retratado o cotidiano de uma família suburbana carioca, diferente das famílias burguesas que eram retratadas por Machado de Assis, em que a elite pondera, quer sempre manter uma imagem, são hipócritas e escondem o que realmente são. Já para as famílias suburbanas não existem pudores nem hipocrisia, eles são o que são sem esconder nada. Em “Como o Homem chegou” é feita uma crítica à burocracia. Numa delegacia do interior, um delegado manda um louco em um carro blindado com um médico, sendo este tão “intelectual” que, durante a viagem de dois anos com total falta de cuidado com o louco e um excesso de preocupação técnica, o paciente chega morto. “Adélia” é um conto com uma carga social denunciativa enorme, faz uma crítica a um hábito comum para a época: o de haver casamentos das garotas que viviam na Casa de Expostos (orfanato) no dia de Santa Isabel. É narrada a história de Adélia, que fora deixada pelos pais em um orfanato e se casou no dia de Santa Isabel, sem amor. No princípio a vida sexual ativa lhe agradou muito, mas passados dois anos de casamento o marido caiu enfermo, e ela, insatisfeita com a vida de enfermeira de alguém que não ama, acaba cedendo a um convite recebido e começa a se prostituir mesmo sentindo-se cobiçada, desejada e ganhando muito dinheiro. Adélia nunca perdeu o olhar distante e perdido que cultivou desde que foi deixada pelos pais no orfanato e que foi casada no dia de Santa Isabel. Em “Uma vagabunda”, Frederico conta ao amigo Chaves a história de Alzira, uma vagabunda que certa vez lhe pedira dinheiro emprestado, mais precisamente cinco mil réis, logo após se encontrarem em um bar. Logo depois, vendo-o pagar a conta com um volumoso monte de dinheiro, pediu-lhe mais cinco mil, que Frederico negou. Alzira indignada atirou os cinco mil que lhe haviam sido emprestados na cara de Frederico. Após um tempo, Frederico sujo, maltrapilho, vivendo uma péssima fase entra em um bar no qual Alzira está. Ela o cumprimenta educadamente e lhe oferece a passagem do bonde, que de imediato Frederico nega, mas que acaba por aceitar. Esse conto quebra os estigmas sociais e os estereótipos que a sociedade hipócrita faz de mulheres como Alzira. A cena final demonstra a imperfeição dos juízos sem provas dos pré-conceitos.
Nos contos de Lima Barreto, as mulheres são retratadas de uma forma muito peculiar. Em “Lívia” é contada a história de uma moça que já teve inúmeros namoros, mas nenhum resultou em casamento, por isso ela passa os dias sonhando com um casamento que lhe dê estabilidade e lhe tire de sua vida miserável. Esse conto faz uma crítica às mulheres que pensam em casar-se não por amor, mas sim por mera conveniência para solucionar problemas financeiros e viver de forma luxuosa. Essas mulheres têm um pensamento racional em relação ao amor e ao casamento. Lívia age de maneira leviana. Já em “Um e Outro” é contada a história de Lola, uma mulher dissimulada que abandonou o marido e tornou-se amante de luxo do homem que um dia fora seu patrão, mas apesar de todos os seus amantes ricos e poderosos, ela gosta mesmo do rude motorista que dirige o carro de luxo em que passeia. Quando vai ao encontro dele depois de uma semana, descobre que ele deixou de dirigir o carro de luxo para dirigir um táxi. Ela imediatamente perde a atração por ele (“... Não era o mesmo, não era o semideus, ele que estava ali presente; era outro ou antes ele era degradado, mutilado, horrendamente mutilado. Guiando um “táxi”...Meu Deus!...” ). É possível identificar características do Pré-Modernismo nos contos de Lima Barreto, pois mostram a realidade da humanidade.
Outra característica de Lima Barreto é o xenofobismo. Ele tem repugnância a tudo que é estrangeiro, como fica explícito no conto “Miss Edith e seu tio” – o título, por si só, já estrangeiro –, em que é narrada a história de dois ingleses: Miss Edith e seu tio, que chegam a uma pensão no Rio de Janeiro e mantêm-se arrogantemente distantes. Todos na pensão sentem-se inferiores aos magníficos ingleses. Essa suposta superioridade não é só física, mas também é intelectual. Porém, no final, toda essa superioridade é quebrada quando Angélica, uma das empregadas da pensão, pega a sobrinha saindo do quarto do tio (“... Premida pelo serviço, Angélica saiu do aposento da inglesa; e foi nesse instante que viu a santa sair do quarto do tio, em trajes de dormir. O espanto foi imenso, a sua ingenuidade dissipou-se e a verdade queimou-lhe os olhos... – Que pouca vergonha! Vá a gente fiar-se nesses estrangeiros... Eles são como nós...”). Mais uma vez acontece a prática do incesto, como em “Um Especialista”.
Durante toda a sua vida como escritor, Lima Barreto foi tido como relaxado, pois escrevia de uma maneira mais acessível ao leitor, escrevia para atingir um público de leitores menos assíduos. Por essa razão foi negado na Academia Brasileira de Letras. Em suas obras privilegiava os negros, pobres e desfavorecidos, valorizando a minoria insignificante. Seus textos eram ficcionais, porém os acontecimentos eram quase todos reais e alguns vividos pelo próprio Lima Barreto.
Seus contos possuem um grande leque de problematização e uma densidade psicológica sem igual. Lima Barreto é um autor que fez uso da ironia para se defender e através dela acabar com os paradigmas da sociedade, escrevendo contos cujos temas servem também para os dias atuais. O crítico Rodrigo Lacerda define Lima Barreto e a sua relação com a ironia: “A ironia em relação aos poderosos, que garante boas risadas até hoje. Outra é a defesa do patrimônio público, uma obsessão desse escritor que se tornou um porta-voz das classes populares. A terceira é a prosa mais ligeira que o normal da época, construída de forma menos rebuscada, preocupando-se menos em obter uma sonoridade retumbante e um ímpeto grandioso.”


Referências:

BARRETO, Lima. Melhores contos de Lima Barreto; seleção de Francisco de Assis Barbosa. 8 ed. – São Paulo: Global, 2002 – (Melhores contos)
Sites:

http://www.rodrigolacerda.com.br (Acessado em 29/05/2010 ás 18h00min);
http://www.machadoelima.utopos.com.br(Acessado em 29/05/2010 ás 19h00min);
http://www.releituras.com/limabarreto_(Acessado em 01/05/2010 ás 17h00min).

quinta-feira, 7 de abril de 2011

ANALISANDO ANDRADE


Hoje o ensaio fica por conta da acadêmica Sarah Fernanda de Carvalho, do 2° ano de Letras (2010): uma leitura a partir das aulas na disciplina de Literatura Brasileira II.

As várias faces de Mário de Andrade

Mário Raul de Moraes Andrade nasceu no dia 9 de outubro de 1893, na cidade de São Paulo. Foi professor, crítico, poeta, contista, romancista e músico, formou-se pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, passando a lecionar neste mesmo local posteriormente. Participou da Semana de Arte Moderna de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo.

Durante sua trajetória, Mário de Andrade fundou a Sociedade de Etnografia e Folclore e também passou por vários cargos públicos; entre estes, foi diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo. Morreu em São Paulo no ano de 1945.
Ao analisar o livro “Os melhores contos de Mário de Andrade”, seleção de Telê Ancona Lopez, nota-se uma bi-divisão: a primeira parte – Belazarte (que tem uma grande preocupação com o outro) e o Compartir, no qual Mário é apenas o intermediador, o contador das histórias, e, como já diz o ditado “Quem conta um conto, aumenta um ponto”. Nessa primeira parte, a denúncia de problemas sociais alia-se à análise da problemática existencial das personagens, há um experimentalismo linguístico: a linguagem é modificada dependendo das questões, para cada situação é utilizada um tipo de linguagem (isso fica evidente no conto “Piá não sofre? Sofre”, onde Paulino – o piá sofredor - narra os acontecimentos. Mário utiliza a linguagem e a mentalidade de uma criança). Ocorre também a junção do lirismo com a crítica social: é um exercício estético para trazer esses “mundos” para o leitor. Esse exercício pode ser visto no manifesto “A Escrava que não era Isaura”, publicado 1925. Nesse manifesto, Mário trabalha com o lirismo, juntamente com a crítica que resulta na poesia. O lirismo é subjetivo, vem do subconsciente. É realizado um novo exercício de liberdade em que primeiro é feita a liberação do subconsciente e depois vem a crítica (é desenvolvida a fórmula de Paul Dermeé).
Em alguns contos da primeira parte da seleção de Telê Ancona Lopes, fica nítida a presença da linguagem social, abrasileirada, a crítica aos modelos tradicionais. Mário dita essas regras em “Prefácio Interessantíssimo”, publicado em “Paulicéia Desvairada”, 1922. Nesse prefácio, que foi o marco para o Modernismo, Mário propõe uma nova maneira de enxergar a arte: construída sob o signo da ambiguidade – destruição/construção (passado e a consciência do presente). Mário trata também os dogmas sociais como o homossexualismo (especula-se que Mário era homossexual) e os valores da cultura brasileira – já que era um pesquisador exímio do folclore Brasileiro. No conto “O Besouro e a Rosa”, que tem como temática o subúrbio de São Paulo, as personagens não sabem expressar seus sentimentos e são infelizes. A personagem principal, Rosa, não tem entendimento da vida. Logo após o ataque do tal besouro (que pode até ser metafórico, pode ser um ladrão, por exemplo), desperta Rosa para a sensualidade: ela passa a enxergar os homens com outros olhos e fica obcecada em arranjar um marido para não terminar seus dias como as tias infelizes e solteironas. Nesse conto Mário faz uma critica à sociedade repleta de tabus, sem fundamentos. Rosa acaba se casando com um bêbado que não lhe proporcionará felicidade alguma. O conto acaba assim: “Rosa foi muito infeliz”, dessa maneira o autor quebra a fórmula dos romances e contos de fadas.
No conto “Caim, Caim e o Resto”, Mário relata um conflito familiar. Mostra o quanto a falta de diálogo é prejudicial nas relações, trabalha a questão da inimizade entre irmãos, a religiosidade nula e o tabu que é mais forte do que qualquer sentimento. No desenrolar do conto aparecem vários traços exteriores típicos da vida ítalo-paulista – como os nomes dos jogadores do Palestra Itália, por exemplo. Esses aspectos emergem do lado artístico (musical) dos italianos e da índole impulsiva. Em “Nelson”, são levantadas questões como a curiosidade alheia, a pobreza, o complexo de inferioridade que o personagem principal – Nelson - possui. Nesse conto, Mário reage ao nacionalismo de fachada. “Foi sonho” é um conto argumentativo no qual não existe narração, que fala da força do ‘garanhão’ – macho - e da coisificação da mulher que é objeto de posse do homem, a condição da mulher de ser ‘coisa’ foi apenas um sonho. O machismo é aceito, porém o dogma social do homossexualismo, por exemplo, não é aceito pela sociedade. Nesse conto existe a polifonia, da qual Mário fala no manifesto “A escrava que não é Isaura”. Essa polifonia diz respeito à sonoridade e não é medida por regras, mas é percebida na leitura.
Na segunda parte da seleção de Telê, Juca Belazarte apresenta preocupação com o outro e Malazarte consigo – consciência. Os contos são extremamente intimistas, em tom psicológico. Mário baseia-se na Teoria dos Sonhos de Freud e centra-se no eixo de individualidade de Juca, protagonista-narrador. Através de evocação memorialista, em profunda introspecção, ele vai relembrando a infância, adolescência e o início da vida adulta. Em “Túmulo, túmulo, túmulo” Mário fala dos laços financeiros e critica as pessoas que, quando possuem dinheiro, gastam tudo de uma única vez. É feito um jogo do narrador de ficção juntamente com biografia (Juca é Mário); esse jogo de narrador e personagem é muito comum no texto Machadiano. “Frederico paciência” fala da amizade com conotação homossexual de dois adolescentes que tentam encontrar justificativas para esse vínculo e se rebelam contra as convenções impostas pela sociedade. Nisto é feito o desfilamento do homossexualismo, que é colocado como um sentimento puro e delicado. Nesse conto o ficcional é ultrapassado, pois os sentimentos são colocados em questionamento. Esse conto remete ao conto “Uma amizade sincera”, de Clarice Lispector, que conta a história de dois amigos que acabam tendo que se separar, porém continuam ligados por um laço invisível: o de uma amizade sincera. Em “Tempo da Camisolinha”, Juca relembra os tempos da sua primeira infância: nesse conto Mário mostra que a criança tem, sim, noção de sensibilidade e fala também do gesto de doação.
No que diz respeito às personagens, pode-se perceber no decorrer dos contos que o retratado é sempre transformado. Os contos da primeira parte abordam personagens de densidade psicológica e a relação conturbada do homem com o mundo. Os contos da segunda parte - centrados em Juca – procuram promover uma interiorização de temas sociais e familiares. Uma coisa é certa: Mário quer ir além de discutir as tramas dessas personagens.
Todos os contos centram-se nos paradigmas ditados por Mário em “Prefácio Interessantíssimo”, que lança as bases estéticas do Modernismo, retomadas e aperfeiçoadas em “A escrava que não é Isaura”. Neste último, expõe suas ideias a respeito da poesia e o rompimento dos padrões estéticos com a chegada das Vanguardas Europeias. Segundo Mário, a beleza pode impressionar tanto quanto o feio. Essa é uma característica do Expressionismo.
De forma magistral, Mário de Andrade traz da Europa para o Brasil a Literatura Expressionista.
Para definir esse autor multifacetado basta ler esse poema em que o próprio Mário se define:
“Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquisila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar de uma vez:
E só tirar a cortina
Que entra luz nesta escuridez.”

(Mário de Andrade in A Costela de Grão Cão).

Referências:
ANDRADE, Mário de. Melhores contos de Mário de Andrade; seleção de Telê Ancona Lopes. 8ª Ed. – São Paulo: Global, 2000;
ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura . São Paulo: Lealdade, 1925;
ANDRADE, Mário. Prefácio interessantíssimo. Paulicéia desvairada. In: ______. Poesias completas. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1966.

Sites:
http://www.nilc.icmc.usp.br (Acessado em 20/06/2010 ás 18h00min);
http://www.forumlitbras.letras.ufrj.br (Acessado em 25/06/2010 ás 17h30min);
http://www.releituras.com/ (Acessado em 30/06/2010 ás 13h00min).