sábado, 6 de agosto de 2011

Histórias de papai

"Histórias de Papai" é uma narrativa da acadêmica Ana Paula Kinas Tavares, do 2° ano de Letras, para a disciplina de Língua portuguesa.

Histórias de papai

Na primeira noite em nossa nova casa, papai me fez dormir contando a conquista da América. Papai me fazia careta para mostrar a fúria dos espanhóis, e fechava os olhos ao dizer que vieram cegos de cobiça. Fiquei triste ao saber que menosprezaram cidades, templos e obras de arte. Perguntei o nome dos povos, e papai sabia de cor, ele disse que são povos bastante estudados, já que tiveram seus impérios destruídos. Lembro-me bem: astecas e incas.
Na noite seguinte, papai me encantou falando dos maias, outro povo que habitou a América, mas que sumiu 600 anos antes dos espanhóis chegarem. Foi um povo ainda mais complexo e poderoso. Segundo papai, eles conheciam o algarismo zero muito antes dos europeus, e construíram cidades monumentais no meio da selva. Pena que meu sono demorou a chegar, não era medo da nova casa, era o tal desaparecimento misterioso daquele povo.
Na manhã seguinte, pedi à mamãe que me ajudasse a encontrar nos livros onde os maias viveram. Papai estava certo, eles sumiram há muito tempo e não deixaram rastro. Descobri que habitaram a Península de Yacatán, um apêndice da América Central. Esse apêndice é banhado pelo Mar do Caribe, que hoje é compartilhado por cinco países. Achei incrível os maias terem sido cinco milhões, mas mamãe não deu bola, sentiu-se mal ao atender o telefone. Papai estava no hospital. Nessa noite eu não dormi.

domingo, 26 de junho de 2011

Short Story: Poe’s Language for Everyday Routine

"Poe’s Language for Everyday Routine" é uma 'short story' escrita pelo acadêmico Juliano Riechelmann Maciel, do 4º ano de Letras, para a atividade de produção escrita da disciplina de Língua Inglesa. Confira:

Poe’s Language for Everyday Routine

It was three o’clock in the morning when the phone rang. I got up very slowly, tired after a long day of work. I can say I crawled towards the phone – I was so sleepy that I could barely sense my senses… But in the end, I picked up the phone and as diligently as a sleep-taken man can be, I put my right ear to work.
There was a burst of ear-shattering sounds echoing on the call. It was the furious cry of some beast, if it was otherworldly or not I couldn’t realize at first. But as I let the phone fall from my hand, while sleep was scared away from my being, I realized it was the cry of a raven, an angry raven.
I gathered my strength and coerced my reason to pick up the phone. I didn’t even have to put it close to my ear again to listen to the cries of the angry bird. I was so puzzled that the only thing I remember after this event was hearing the warning of my clock. It was time to get up, but I was already up. The phone was still in my hand, but it was already mute. I had stayed still for three and a half hours, listening to a raven crying for some indefinite time.
But reason and hard routine put me back into my life. A few minutes later I was at my poor breakfast table eating some dry toasts and taking some sips of biter coffee. My tuxedo was old. My shoes, worn. The milkman opened the gate, as usual. I heard him putting the bottles in front of my kitchen’s door.
I went to the door and opened it. Perhaps I had to see another man to convince myself I was dreaming no more – the cries of the angry crow still haunted the shadows of my thoughts. Indeed, the milkman was there. I said good morning. The neutral tunes of a raven answered back. I stood still, a running pointer freezing time as the clock’s reason cracks. The old lady next door passed in front of my house, taking her morning walk. She saw my fright-pale work-pale face and muttered something, perhaps if I was all right. I don’t know, I couldn’t pick a word from her raven voice. Children passed behind her, singing their merry tunes on their way to school – singing something terrible with their voices of crows in choir. The world’s language was new for me. I couldn’t understand anything else. Anywhere I went in despair, every door I knocked in disrepair answered me with the voice of a raven.
I wandered through the streets, the cacophony of crow voices numbing my brain, tormenting my ears, taking over me. I wandered for days, and everywhere I went, everyone I turned to… It was all in vain, all I could hear was the never-changing tunes of the crows’ voices, sinister, macabre, angry, bitter, lamenting, malicious… The relentless voices were already echoing in my soul when I found myself at home again. I looked to the clock – it was three o’clock in the morning. I was standing still with the phone in my hands – just as it all had began. Suddenly I found myself in my pajamas again.
It was a dream. It was just a dream. I went back to my bed, feeling the wind of a nearby open window. I looked through it. It was my mistake.
There was a crow atop the driest branch of my garden oak. The bird’s eyes were silver under the moonshine.
“It was just a dream… I woke up from it!” I muttered.
“Nevermore” the raven said from above. Thousands of people poured through the door and windows of my bedroom, all of them speaking the raven tongue.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Um povo em uma constelação.

O texto de hoje, da acadêmica Tabita Maier, do 2º ano de Letras, é outro resultado da mesma proposta que originou a já publicada narrativa Mãos sujas de sangue: desenvolver uma narrativa tendo como base um texto de caráter informativo, sem coordenação entre as orações.

Um povo em uma constelação

Há muito tempo atrás, em algum lugar do Oceano Atlântico, uma frota de conquistadores espanhóis cortavam os mares até finalmente avistarem uma esperança em forma de terra. Gritaram animados e esperançosos “Terra à vista”!
Depois de meses em alto mar, encorajados pela aventura e assustados pelas doenças e tempestades, finalmente um lugar tranqüilo em terra para descansar e renovar sua fé.
Surpresos, os aventureiros do mar olharam para toda a riqueza que o novo mundo lhes oferecia. Cegos por sua cobiça e egoísmo, os conquistadores não se importaram em manchar de sangue nosso cenário pacífico e encantador. Nada era mais valioso do que aquele brilho amarelo, o ouro!
Talvez, as riquezas naturais dos altos dos penhascos, caindo em forma de água poderosa sobre as pedras, a imensidão das árvores, as flores com suas formas e perfumes e o cantar dos pássaros nunca ouvidos e vistos antes não fossem tão encantadores quanto todo o ouro que ali se encontrava.
De repente, tudo ficou quieto. Os pássaros não cantavam mais, os animais ficaram imóveis, as plantas deixaram de exalar seus perfumes, o vento ficou mais seco...
De fronte com habitantes do Novo Mundo, os conquistadores mancharam com sangue todas as árvores, todas as flores e as penas dos pássaros. Povos conhecidos por sua inteligência, sua eficácia em construções monumentais, seu equilíbrio com a natureza e com o espírito; em pouco tempo, a arte, as casas, tudo se resumiu a poças de sangue espalhadas pela antes paradisíaca floresta.
Há pelo menos seiscentos anos antes da chegada dos conquistadores, havia, nessas mesmas terras, um povo mais corajoso e complexo do que aqueles que um dia existiram.
Eram capazes de construir verdadeiras cidades no meio da floresta e da mata fechada. Podiam entender as estrelas, a medicina, a matemática e as ciências. Há quem acredite que suas últimas anotações sobre as estrelas indiquem o fim do mundo para todos.
Um dia, o povo maia deixou de existir. Apesar de seu poderio, de suas riquezas e inteligência inigualáveis, um povo com mais de cinco milhões de pessoas deixou tudo para trás. Suas histórias, suas artes e seus deuses nunca mais foram vistos de novo. Apenas restos do que ficou para trás.
Há quem acredite numa força paranormal que os tenha levado, outros preferem acreditar que foram vencidos por outros povos. E há aqueles que preferem acreditar que os maias, de tanto olharem as estrelas, viraram uma constelação.

domingo, 19 de junho de 2011

Breeds on the leash, mutts on the streets

O texto abaixo, em inglês, é de autoria da Jenifer do 3º ano de Letras para a disciplina de Expressão escrita em língua inglesa, pertencente à dupla habilitação português-inglês. A proposta era escrever um texto para um jornal expressando uma opinião ou ideia.

Breeds on the leash, mutts on the streets

As someone who loves animals and tries its best to protect them (but who has given up on promoting vegetarianism, since no one cares about it), I have decided to dedicate myself to a less complex matter: breeding versus rescuing/buying versus adopting. I find it horrifying and incomprehensible to see yorkshires, golden retrievers and Persian cats being walked on sparkling, fancy leashes while non-defined breed creatures (a.k.a. mutts) starve, become dehydrated and severely ill, get run over, burned, kicked, stoned etc. every day on the streets.

Breeding is a cruel, selfish practice that views nothing but making easy money by getting females pregnant every time they are in heat (every 6 months), keeping them in small, unsanitary cages, separating them from their babies way too early, selling the puppies and kittens (most of the times without vaccinating and/or deworming them) for outrageous prices, and giving away (or killing) the females once they get too old for reproducing. I am not making that up; with a quick search on the internet, anyone can read about millions of kennels and catteries that have been denounced and closed down all around the world for these reasons. Even breeders who provide proper health care, large, open areas and sanitary conditions cannot escape the fact that they are trading lives for bucks, which is obviously not an ethical attitude.

Even worse, since I am part of a rescue group, everybody shows great pity when I talk about the mistreating cases we handle, but that is all they do. Unfortunately, most individuals still prefer to buy a pet rather than adopting one, because they think street animals are ugly, dirty, hard to educate and may carry illnesses. Evidently that is futility and ignorance. It is futility because obviously no living being is supposed to be a toy, ornament or symbol of status. It is ignorance because people do not know that the levels of disability, deformity and disease in pedigree individuals are rising every year, while mutts are very resistant and can live much longer. Also, it is not the breed (or the lack of it) that determines behavior; a poodle may poop on places it is not supposed to and eat shoes if its OWNER allows this behavior. Plus, we have had many owners asking us to keep their “buys” because they could not predict certain things: “it grew up too much”, “it loses too much fur”, “it is too active” etc. There is no need to say that those who charge R$ 300.00 to R$ 2,000.00 for a puppy/kitten do not take “merchandise” back or make refunds. Well, if you decide to adopt a friend, you will spend a maximum of R$ 50.00 to cover the costs of vaccination and spay/neuter that shelters provide, although some organizations do not charge a dime. More than that, if you adopt a pet that does not meet your expectations, the shelter/organization will take it back anytime, although it is important to say that this kind of situation hardly ever occurs, since rescuers (not sellers) actually KNOW their protected ones and do not push matches that might not work (for instance, an active/impatient/anxious dog and someone who lives in an apartment). Finally, unlike those who trade lives for money, we actually have great concern about the future of our “pals/paws” and do not pass them on if veterinarians suspect they might be sick, which saves a lot of trouble to adopters.

It is more than time people opened their eyes for the disgusting, cruel market behind the cute, furry babies displayed on shop windows. Human beings must NOW leave their prejudices behind and think rationally to see the innumerous advantages of adoption. Next time you see a dirty, skinny, wounded dog/cat smelling trash bins, do not ignore it or feel disgusted. It will be your dearest friend until the end of its life if only you give it a chance.

domingo, 12 de junho de 2011

Narrativa - Mãos sujas de sangue

A narrativa abaixo foi escrita pelo acadêmico Maikon Alexandre Bittencourt, do 2º ano de Letras, para a disciplina de Língua Portuguesa, seguindo a proposta de criar uma narrativa a partir de um texto em que as orações se encontravam dispostas sem coordenação, ou seja, “sem liga”.

Mãos sujas de sangue

- Terra à vista!
Foi o grito que veio do cesto de gávea e alegrou os corações de nossa tripulação. Nossa viagem já durava alguns meses no mar, me lembro como se fosse hoje. Fui enviado para um tipo de missão de reforço, eu e meus homens tínhamos ouvido que havia muito ouro esperando por nós naquela terra, o Novo Mundo; fomos loucos, como cavalos mal treinados correm ao pote de água após de um bom passeio pelo deserto, éramos homens fortes e desimpedidos.
Aportamos e vimos aquela terra selvagem, e já nos estavam esperando, nossos compatriotas estavam tendo problemas com alguns nativos, preparamos nossas armas e fomos, sem piedade para qualquer selvagem, era assim que pensávamos e era assim que nos fizeram pensar, e afinal de contas, era o ouro que queríamos, e este como o sol ofuscava a nossa visão. O brilho era tão forte que ao voltarmos nossos olhos para baixo tudo era escuridão, quem já olhou para o sol sabe, não importa quanto o dia seja claro, olhe e depois de um tempo quando tentar mirar outro lugar todo será escuro. Por isso não nos importávamos, não nos interessavam seus templos, sua arte, sua cultura ou mesmo suas vidas, quem caía sob nossa lâmina ou a mira de nossas armas tinha seu último suspiro, pois seus arcos não eram páreos para nossos mosquetes.
Até que um dia minha visão se abriu, do pior jeito possível.
Entramos em suas cidades. Nossos homens matavam os selvagens a sangue frio e usavam suas mulheres, ao seu bel prazer. E eu, mesmo sabendo do erro de meus companheiros, não fazia nada para detê-los. Minha mente estava podre, minha consciência me atormentava e a batalha que ocorria dentro de mim quando me deitava era pior do que qualquer outra que se passava durante o dia.
E nesse momento uma faísca pode causar uma grande explosão. Já tínhamos dominado aos Astecas e aos Incas, e negociávamos pelo seu ouro, quando uma criança nativa que fora forçada a nos servir deixou cair vinho sobre um de nossos comandantes. Pobre criança, seus braços ainda não eram suficientemente fortes para carregar aquela jarra, o medo não lhe dava firmeza nas pernas, mas tudo isso não foi considerado por aquele homem, e me sinto culpado de chamá-lo de homem, pois enquanto o menino o fitava com olhos assustados, ele sacou a arma e atirou. Para mim foi como se o tempo tivesse parado, todo o sangue antes derramado veio em minha mente junto com o do pobre garoto. Percebi o quão fútil era aquela busca, e quão baixa era aquela nossa vida. Senti o chão tremer sob os meus pés; era como se nada valesse a pena, preferiria morrer ali mesmo, no lugar daquele inocente, porém algo mais estava preparado para mim. Uma mulher vinha correndo em direção ao monstro que havia matado o seu filho, estava desesperada e armada simplesmente com uma faca. Aquilo não seria suficiente, pois a mesma mão suja com o sangue inocente erguia-se em direção à pobre mãe. Não pensei duas vezes: no mesmo instante em que desembainhava minha espada, mirava em sua garganta, e a mesma lâmina usada para dizimar aquele povo cortou pela última vez, e desta vez foi para defendê-los, pois a mão que atirou no filho não atiraria mais. Lá estava a mulher paralisada, ela não sabia o que fazer, olhava para mim como se aquilo não fosse real, porém logo continuou. Eu via agradecimento em seus olhos, ela pegou seu filho no colo e olhou para mim novamente com lágrimas nos olhos.
Eu sabia o que tinha feito e os homens que ali estavam ficaram por alguns momentos paralisados, mas logo que recobraram a razão alguns saíram correndo para chamar outros. Pensei que aquele seria meu fim, um deles ergueu sua arma para mim, escutei um disparo, mas continuava vivo; percebi naquele momento que eu não fora o único a recobrar a visão. Outros dez homens vieram até mim e ficamos lado a lado. Eu ajudei a mulher que estava com seu filho ensanguentado no colo a se levantar, eu sabia o que ela queria, ela não tinha tempo para chorar, precisávamos fugir. Ela queria propiciar um funeral digno para seu filho, então corremos, passamos por vários homens, alguns viam a criança, escutavam as explicações rápidas dos que me seguiam e se juntavam a nós, outros tentavam nos impedir, em vão.
Quando já havíamos percorrido uma boa distância floresta adentro, paramos. A mulher ainda com seu filho nos braços olhou para mim e pediu que a seguíssemos. Andamos por um bom tempo até chegarmos a um lugar estranho que parecia um abrigo. Lá vários nativos tentaram nos impedir de entrar, mas a mulher lhes explicou em sua língua o que havia ocorrido e fomos bem acolhidos, com a condição de que nunca mais voltaríamos atrás.
Assim foi. Permanecemos com o povo refugiado, aprendemos sua língua e fugimos junto com eles, por um longo tempo, e os espanhóis ainda nos perseguem mesmo despistados. Hoje escrevo, e não sei se alguém vai ler algum dia, estamos longe do lugar onde tudo começou, mas paramos de fugir. Achamos um lugar para nós, ao que se conta é uma antiga cidade construída por um antigo povo, muito misterioso, pois ninguém sabe como eles sumiram, e quem vê tudo isso ficaria impressionado: são reais monumentos, e grandiosos, parece que o próprio Deus desceu dos céus e os ajudou a construir tudo isso, é maravilhoso. Pena que não resta ninguém que participou dessa obra, e me assombra o pensamento de que meus antigos companheiros, meus compatriotas, os verdadeiros selvagens, possam descobrir isso, pois sei que não hesitarão em destruir tudo. Porém agora permaneceremos aqui, e não me importa que tenhamos o mesmo fim dos últimos que habitaram esse lugar, porque quanto a mim sei que posso pagar meus pecados ajudando esse povo, que por um tempo cegamente desprezei, e hoje consigo dormir com mais tranquilidade, por isso não vou abandoná-los, pois agora sou um deles.

terça-feira, 12 de abril de 2011

O Sarcasmo Protestante de Lima Barreto


O ensaio de hoje é de autoria da acadêmica Sarah Fernanda de Carvalho: contempla vida e obra do nacionalista/anarquista Afonso Henriques de Lima Barreto.


Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu no Rio de Janeiro em 1881. Seus textos possuem características jornalísticas (aspecto de crônica) e urbanistas.
Lima Barreto procurava mostrar a realidade como ele percebia, fazendo duras críticas à sociedade, costumes e valores através de seus personagens. Ele utiliza o discurso em 3ª pessoa, pois dessa forma se distancia das personagens, tornando-se onisciente, além de transmitir para as personagens valores que estão presentes na sua essência. Seus contos são imprevisíveis, como por exemplo o conto “Um Especialista”, no qual dois amigos que se encontram todas as tardes comentam sobre a vida, os amores, os negócios, até que um dos amigos comenta que está namorando uma bela mulata e por fim acaba por descobrir que ela é sua filha, dessa maneira acaba acontecendo um incesto não proposital.
É perceptível a presença autobiográfica nos contos de Lima Barreto. Ele faz uma mescla da sua biografia com um pouco de ficção, como fica nítido em vários contos. Em “O filho de Gabriela”, a personagem Horácio, assim como Lima Barreto, tem seus estudos bancados pelo padrinho, porém sempre se sentiu deslocado; em “Harakashy e as escolas de Java” Lima Barreto faz uma sátira às escolas brasileiras (corrupção no ensino) e à Academia Brasileira de Letras (na qual foi barrado), metaforizadas nas instituições de Java: o jovem Harakashy foi expulso das escolas de Java assim como Lima Barreto sofreu na Escola Politécnica, ele sofreu muito preconceito por ser negro e pobre, e por isso nunca conseguiu concluir o curso. Nesses dois contos é visível a presença do tom irônico de Lima Barreto, no qual ele deixa-se levar por impulsos íntimos, todos frutos da mágoa e do sentimento de inferioridade que passou a sentir após vários fatos negativos que ocorreram em sua vida.
É notável a presença da crítica ao falso moralismo da sociedade burguesa. Em “A Nova Califórnia”, é feita uma crítica à ganância. O falso moralismo é quebrado com a descoberta do lucro, existe também a valorização do que a sociedade rejeita: a única pessoa que não viola as sepulturas em busca de ossos é o bêbado Belmiro que ficou bebendo, indiferente a tudo que acontecia, sem se preocupar em obter lucro através dos ossos dos mortos. Uma curiosidade: esse conto foi adaptado para a Rede Globo e foi ao ar como novela – Fera Ferida. No conto “O homem que sabia Javanês” um amigo conta a outro sobre as espertezas e trapaças que usou para sobreviver: uma delas foi fingir que sabia Javanês sem o saber. Ele conta que foi até nomeado cônsul e representou o Brasil em uma reunião de sábios, deu palestras e publicou pelo mundo em Java. Esse conto mostra a falta de honestidade para conseguir, de certa forma, se dar bem na vida e tirar sempre alguma vantagem sobre os outros. Em “Cló” é retratada a decadência moral de uma família durante o carnaval no Rio de Janeiro, tendo como personagem principal Cló, filha do casal Isabel e Maximiliano, que procura sem rodeios se insinuar para o Doutor André, um amigo da família que é casado. O conto termina com Cló se entregando ao Doutor André (“... Ao acabar, era com prazer especial, cheia de dengues nos olhos e na voz, com um longo gozo íntimo que ela, sacudindo as ancas e pondo as mãos dobradas pelas costas na cintura, curvava-se para o Doutor André e dizia vagamente: Mi compra ioiô! E repetia com mais volúpia, ainda uma vez: Mi compra ioiô!”). Nesse conto fica retratado o cotidiano de uma família suburbana carioca, diferente das famílias burguesas que eram retratadas por Machado de Assis, em que a elite pondera, quer sempre manter uma imagem, são hipócritas e escondem o que realmente são. Já para as famílias suburbanas não existem pudores nem hipocrisia, eles são o que são sem esconder nada. Em “Como o Homem chegou” é feita uma crítica à burocracia. Numa delegacia do interior, um delegado manda um louco em um carro blindado com um médico, sendo este tão “intelectual” que, durante a viagem de dois anos com total falta de cuidado com o louco e um excesso de preocupação técnica, o paciente chega morto. “Adélia” é um conto com uma carga social denunciativa enorme, faz uma crítica a um hábito comum para a época: o de haver casamentos das garotas que viviam na Casa de Expostos (orfanato) no dia de Santa Isabel. É narrada a história de Adélia, que fora deixada pelos pais em um orfanato e se casou no dia de Santa Isabel, sem amor. No princípio a vida sexual ativa lhe agradou muito, mas passados dois anos de casamento o marido caiu enfermo, e ela, insatisfeita com a vida de enfermeira de alguém que não ama, acaba cedendo a um convite recebido e começa a se prostituir mesmo sentindo-se cobiçada, desejada e ganhando muito dinheiro. Adélia nunca perdeu o olhar distante e perdido que cultivou desde que foi deixada pelos pais no orfanato e que foi casada no dia de Santa Isabel. Em “Uma vagabunda”, Frederico conta ao amigo Chaves a história de Alzira, uma vagabunda que certa vez lhe pedira dinheiro emprestado, mais precisamente cinco mil réis, logo após se encontrarem em um bar. Logo depois, vendo-o pagar a conta com um volumoso monte de dinheiro, pediu-lhe mais cinco mil, que Frederico negou. Alzira indignada atirou os cinco mil que lhe haviam sido emprestados na cara de Frederico. Após um tempo, Frederico sujo, maltrapilho, vivendo uma péssima fase entra em um bar no qual Alzira está. Ela o cumprimenta educadamente e lhe oferece a passagem do bonde, que de imediato Frederico nega, mas que acaba por aceitar. Esse conto quebra os estigmas sociais e os estereótipos que a sociedade hipócrita faz de mulheres como Alzira. A cena final demonstra a imperfeição dos juízos sem provas dos pré-conceitos.
Nos contos de Lima Barreto, as mulheres são retratadas de uma forma muito peculiar. Em “Lívia” é contada a história de uma moça que já teve inúmeros namoros, mas nenhum resultou em casamento, por isso ela passa os dias sonhando com um casamento que lhe dê estabilidade e lhe tire de sua vida miserável. Esse conto faz uma crítica às mulheres que pensam em casar-se não por amor, mas sim por mera conveniência para solucionar problemas financeiros e viver de forma luxuosa. Essas mulheres têm um pensamento racional em relação ao amor e ao casamento. Lívia age de maneira leviana. Já em “Um e Outro” é contada a história de Lola, uma mulher dissimulada que abandonou o marido e tornou-se amante de luxo do homem que um dia fora seu patrão, mas apesar de todos os seus amantes ricos e poderosos, ela gosta mesmo do rude motorista que dirige o carro de luxo em que passeia. Quando vai ao encontro dele depois de uma semana, descobre que ele deixou de dirigir o carro de luxo para dirigir um táxi. Ela imediatamente perde a atração por ele (“... Não era o mesmo, não era o semideus, ele que estava ali presente; era outro ou antes ele era degradado, mutilado, horrendamente mutilado. Guiando um “táxi”...Meu Deus!...” ). É possível identificar características do Pré-Modernismo nos contos de Lima Barreto, pois mostram a realidade da humanidade.
Outra característica de Lima Barreto é o xenofobismo. Ele tem repugnância a tudo que é estrangeiro, como fica explícito no conto “Miss Edith e seu tio” – o título, por si só, já estrangeiro –, em que é narrada a história de dois ingleses: Miss Edith e seu tio, que chegam a uma pensão no Rio de Janeiro e mantêm-se arrogantemente distantes. Todos na pensão sentem-se inferiores aos magníficos ingleses. Essa suposta superioridade não é só física, mas também é intelectual. Porém, no final, toda essa superioridade é quebrada quando Angélica, uma das empregadas da pensão, pega a sobrinha saindo do quarto do tio (“... Premida pelo serviço, Angélica saiu do aposento da inglesa; e foi nesse instante que viu a santa sair do quarto do tio, em trajes de dormir. O espanto foi imenso, a sua ingenuidade dissipou-se e a verdade queimou-lhe os olhos... – Que pouca vergonha! Vá a gente fiar-se nesses estrangeiros... Eles são como nós...”). Mais uma vez acontece a prática do incesto, como em “Um Especialista”.
Durante toda a sua vida como escritor, Lima Barreto foi tido como relaxado, pois escrevia de uma maneira mais acessível ao leitor, escrevia para atingir um público de leitores menos assíduos. Por essa razão foi negado na Academia Brasileira de Letras. Em suas obras privilegiava os negros, pobres e desfavorecidos, valorizando a minoria insignificante. Seus textos eram ficcionais, porém os acontecimentos eram quase todos reais e alguns vividos pelo próprio Lima Barreto.
Seus contos possuem um grande leque de problematização e uma densidade psicológica sem igual. Lima Barreto é um autor que fez uso da ironia para se defender e através dela acabar com os paradigmas da sociedade, escrevendo contos cujos temas servem também para os dias atuais. O crítico Rodrigo Lacerda define Lima Barreto e a sua relação com a ironia: “A ironia em relação aos poderosos, que garante boas risadas até hoje. Outra é a defesa do patrimônio público, uma obsessão desse escritor que se tornou um porta-voz das classes populares. A terceira é a prosa mais ligeira que o normal da época, construída de forma menos rebuscada, preocupando-se menos em obter uma sonoridade retumbante e um ímpeto grandioso.”


Referências:

BARRETO, Lima. Melhores contos de Lima Barreto; seleção de Francisco de Assis Barbosa. 8 ed. – São Paulo: Global, 2002 – (Melhores contos)
Sites:

http://www.rodrigolacerda.com.br (Acessado em 29/05/2010 ás 18h00min);
http://www.machadoelima.utopos.com.br(Acessado em 29/05/2010 ás 19h00min);
http://www.releituras.com/limabarreto_(Acessado em 01/05/2010 ás 17h00min).

quinta-feira, 7 de abril de 2011

ANALISANDO ANDRADE


Hoje o ensaio fica por conta da acadêmica Sarah Fernanda de Carvalho, do 2° ano de Letras (2010): uma leitura a partir das aulas na disciplina de Literatura Brasileira II.

As várias faces de Mário de Andrade

Mário Raul de Moraes Andrade nasceu no dia 9 de outubro de 1893, na cidade de São Paulo. Foi professor, crítico, poeta, contista, romancista e músico, formou-se pelo Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, passando a lecionar neste mesmo local posteriormente. Participou da Semana de Arte Moderna de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo.

Durante sua trajetória, Mário de Andrade fundou a Sociedade de Etnografia e Folclore e também passou por vários cargos públicos; entre estes, foi diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo. Morreu em São Paulo no ano de 1945.
Ao analisar o livro “Os melhores contos de Mário de Andrade”, seleção de Telê Ancona Lopez, nota-se uma bi-divisão: a primeira parte – Belazarte (que tem uma grande preocupação com o outro) e o Compartir, no qual Mário é apenas o intermediador, o contador das histórias, e, como já diz o ditado “Quem conta um conto, aumenta um ponto”. Nessa primeira parte, a denúncia de problemas sociais alia-se à análise da problemática existencial das personagens, há um experimentalismo linguístico: a linguagem é modificada dependendo das questões, para cada situação é utilizada um tipo de linguagem (isso fica evidente no conto “Piá não sofre? Sofre”, onde Paulino – o piá sofredor - narra os acontecimentos. Mário utiliza a linguagem e a mentalidade de uma criança). Ocorre também a junção do lirismo com a crítica social: é um exercício estético para trazer esses “mundos” para o leitor. Esse exercício pode ser visto no manifesto “A Escrava que não era Isaura”, publicado 1925. Nesse manifesto, Mário trabalha com o lirismo, juntamente com a crítica que resulta na poesia. O lirismo é subjetivo, vem do subconsciente. É realizado um novo exercício de liberdade em que primeiro é feita a liberação do subconsciente e depois vem a crítica (é desenvolvida a fórmula de Paul Dermeé).
Em alguns contos da primeira parte da seleção de Telê Ancona Lopes, fica nítida a presença da linguagem social, abrasileirada, a crítica aos modelos tradicionais. Mário dita essas regras em “Prefácio Interessantíssimo”, publicado em “Paulicéia Desvairada”, 1922. Nesse prefácio, que foi o marco para o Modernismo, Mário propõe uma nova maneira de enxergar a arte: construída sob o signo da ambiguidade – destruição/construção (passado e a consciência do presente). Mário trata também os dogmas sociais como o homossexualismo (especula-se que Mário era homossexual) e os valores da cultura brasileira – já que era um pesquisador exímio do folclore Brasileiro. No conto “O Besouro e a Rosa”, que tem como temática o subúrbio de São Paulo, as personagens não sabem expressar seus sentimentos e são infelizes. A personagem principal, Rosa, não tem entendimento da vida. Logo após o ataque do tal besouro (que pode até ser metafórico, pode ser um ladrão, por exemplo), desperta Rosa para a sensualidade: ela passa a enxergar os homens com outros olhos e fica obcecada em arranjar um marido para não terminar seus dias como as tias infelizes e solteironas. Nesse conto Mário faz uma critica à sociedade repleta de tabus, sem fundamentos. Rosa acaba se casando com um bêbado que não lhe proporcionará felicidade alguma. O conto acaba assim: “Rosa foi muito infeliz”, dessa maneira o autor quebra a fórmula dos romances e contos de fadas.
No conto “Caim, Caim e o Resto”, Mário relata um conflito familiar. Mostra o quanto a falta de diálogo é prejudicial nas relações, trabalha a questão da inimizade entre irmãos, a religiosidade nula e o tabu que é mais forte do que qualquer sentimento. No desenrolar do conto aparecem vários traços exteriores típicos da vida ítalo-paulista – como os nomes dos jogadores do Palestra Itália, por exemplo. Esses aspectos emergem do lado artístico (musical) dos italianos e da índole impulsiva. Em “Nelson”, são levantadas questões como a curiosidade alheia, a pobreza, o complexo de inferioridade que o personagem principal – Nelson - possui. Nesse conto, Mário reage ao nacionalismo de fachada. “Foi sonho” é um conto argumentativo no qual não existe narração, que fala da força do ‘garanhão’ – macho - e da coisificação da mulher que é objeto de posse do homem, a condição da mulher de ser ‘coisa’ foi apenas um sonho. O machismo é aceito, porém o dogma social do homossexualismo, por exemplo, não é aceito pela sociedade. Nesse conto existe a polifonia, da qual Mário fala no manifesto “A escrava que não é Isaura”. Essa polifonia diz respeito à sonoridade e não é medida por regras, mas é percebida na leitura.
Na segunda parte da seleção de Telê, Juca Belazarte apresenta preocupação com o outro e Malazarte consigo – consciência. Os contos são extremamente intimistas, em tom psicológico. Mário baseia-se na Teoria dos Sonhos de Freud e centra-se no eixo de individualidade de Juca, protagonista-narrador. Através de evocação memorialista, em profunda introspecção, ele vai relembrando a infância, adolescência e o início da vida adulta. Em “Túmulo, túmulo, túmulo” Mário fala dos laços financeiros e critica as pessoas que, quando possuem dinheiro, gastam tudo de uma única vez. É feito um jogo do narrador de ficção juntamente com biografia (Juca é Mário); esse jogo de narrador e personagem é muito comum no texto Machadiano. “Frederico paciência” fala da amizade com conotação homossexual de dois adolescentes que tentam encontrar justificativas para esse vínculo e se rebelam contra as convenções impostas pela sociedade. Nisto é feito o desfilamento do homossexualismo, que é colocado como um sentimento puro e delicado. Nesse conto o ficcional é ultrapassado, pois os sentimentos são colocados em questionamento. Esse conto remete ao conto “Uma amizade sincera”, de Clarice Lispector, que conta a história de dois amigos que acabam tendo que se separar, porém continuam ligados por um laço invisível: o de uma amizade sincera. Em “Tempo da Camisolinha”, Juca relembra os tempos da sua primeira infância: nesse conto Mário mostra que a criança tem, sim, noção de sensibilidade e fala também do gesto de doação.
No que diz respeito às personagens, pode-se perceber no decorrer dos contos que o retratado é sempre transformado. Os contos da primeira parte abordam personagens de densidade psicológica e a relação conturbada do homem com o mundo. Os contos da segunda parte - centrados em Juca – procuram promover uma interiorização de temas sociais e familiares. Uma coisa é certa: Mário quer ir além de discutir as tramas dessas personagens.
Todos os contos centram-se nos paradigmas ditados por Mário em “Prefácio Interessantíssimo”, que lança as bases estéticas do Modernismo, retomadas e aperfeiçoadas em “A escrava que não é Isaura”. Neste último, expõe suas ideias a respeito da poesia e o rompimento dos padrões estéticos com a chegada das Vanguardas Europeias. Segundo Mário, a beleza pode impressionar tanto quanto o feio. Essa é uma característica do Expressionismo.
De forma magistral, Mário de Andrade traz da Europa para o Brasil a Literatura Expressionista.
Para definir esse autor multifacetado basta ler esse poema em que o próprio Mário se define:
“Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquisila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar de uma vez:
E só tirar a cortina
Que entra luz nesta escuridez.”

(Mário de Andrade in A Costela de Grão Cão).

Referências:
ANDRADE, Mário de. Melhores contos de Mário de Andrade; seleção de Telê Ancona Lopes. 8ª Ed. – São Paulo: Global, 2000;
ANDRADE, Mário de. A escrava que não é Isaura . São Paulo: Lealdade, 1925;
ANDRADE, Mário. Prefácio interessantíssimo. Paulicéia desvairada. In: ______. Poesias completas. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1966.

Sites:
http://www.nilc.icmc.usp.br (Acessado em 20/06/2010 ás 18h00min);
http://www.forumlitbras.letras.ufrj.br (Acessado em 25/06/2010 ás 17h30min);
http://www.releituras.com/ (Acessado em 30/06/2010 ás 13h00min).